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disputas de sentido: guerra x massacre

o texto a seguir foi meu* trabalho final de uma disciplina da linguística que trata das ciências do léxico (grosso modo, definições de palavras e elaboração de dicionários). a proposta era que abordássemos pares de palavra cujos sentidos estão em algum tipo de disputa na sociedade, construindo e promovendo uma discussão crítica sobre conceitos e normatizações e sua relação com usos sociais e democracia. embora as restrições técnicas do trabalho tenham me obrigado a deixar de fora um monte de coisa que acho relevante incluir no assunto, tô compartilhando porque não vejo sentido nisso ficar só no ambiente acadêmico, considerando que é um tema de enorme importância, especialmente neste momento. pode compartilhar à vontade também; agradeceria se incluísse os créditos, mas nem faço questão. boa leitura!

*niê (instagram/twitter)

GUERRA X MASSACRE

As ruas da minha cidade não têm nome.
Se um palestino é morto por um sniper ou drone,
damos à rua o seu nome.
Crianças aprendem melhor os números
quando podem contar quantas casas ou escolas
foram destruídas, quantas mães e pais
foram feridos ou jogados na prisão.

(Mosab Abu Toha)¹

O que é uma guerra?

Praticamente toda primeira definição de guerra presente em dicionários inclui alguma menção ao combate armado entre pelo menos dois lados, como no Michaelis² — “luta armada entre nações, etnias diferentes ou partidos de uma mesma nação, por motivos territoriais, econômicos ou ideológicos” — ou no Cambridge³ — “luta armada entre dois ou mais países ou grupos”. Na prática, nem sempre a palavra faz referência exclusivamente ao enfrentamento direto, mas a uma projeção de duas ou mais partes capazes de contrapor-se uma a outra, como exemplifica a Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética: duas superpotências mundiais com sistemas político-econômicos antagônicos que competiam em termos ideológicos e de capacidade bélica.

Mas e quando esses lados não têm simetria, para começo de conversa?

Esse é o caso da questão de Israel e da Palestina, que internacionalmente recebe a designação de guerra desde pelo menos 1948, quando o Estado de Israel foi criado em território palestino através da desapropriação e deslocamento de mais de 700 mil árabes — o que ficou conhecido como al-Nakba (“a catástrofe”). Hoje, a Palestina se limita apenas à Cisjordânia, incluindo parte de Jerusalém, e à Faixa de Gaza, que desde 2007 se encontra sob um bloqueio marítimo, terrestre e aéreo imposto por Israel⁴. Como se tudo isso já não comunicasse o desequilíbrio entre os dois lados, Israel é um dos maiores investidores militares e exportadores de armamento do mundo, enquanto a Palestina não possui exército regular nem indústria de defesa nacional⁵.

Tal exemplo mostra que a palavra carrega em si sentidos que implicam em projetos geopolíticos e relações de poder, sustentando definições dominantes ligadas a interesses legitimadores de determinadas atitudes. Guerra certamente é um desses casos, e se tomarmos um contraponto à perspectiva hegemônica do ocidente imperialista e colonizador, podemos refletir sobre o que fica de fora dessas definições: o ativista indígena norte-americano Leonard Peltier diz que guerra é “quando [os esforços dos opressores] para colonizar povos indígenas encontram resistência ou qualquer coisa que não seja rendição absoluta” (PELTIER, 1999)⁶.

Vale tudo numa guerra? Quem determina seus limites?

Em artigo para a Revista de Informação Legislativa⁷, Palhares Moreira Reis evoca a definição de guerra do general prussiano Carl von Clausewitz, “um ato de violência destinado a forçar o adversário a submeter-se à nossa vontade”, para afirmar que não há qualquer limite para a manifestação dessa violência. Considerando a assimetria de poder entre Israel e Palestina, podemos imaginar resultados bastante diferentes em cada lado se isso fosse colocado em prática; na verdade, já faz algum tempo que é possível observar isso acontecendo.

Em 7 de outubro, o Hamas, grupo palestino de resistência armada à ocupação israelense, invadiu Israel e causou pelo menos 1.300 mortes no que foi denominado “o pior atentado terrorista no mundo desde o 11 de Setembro” por Dani Avelar, no jornal Folha de S. Paulo⁸. Em resposta, Israel deu início a uma ofensiva militar sem precedentes, que em pouco mais de um mês causou, segundo a ReliefWeb⁹, a morte de mais de 10 mil palestinos, deixando pelo menos 24 mil feridos e 65% da população de Gaza desabrigada, com fornecimento de combustível, eletricidade e água cortados e um sistema de saúde em colapso¹⁰. No título de uma reportagem da Middle East Monitor, fica clara a proporção das consequências da ofensiva de Israel – “‘Não há lugar seguro’ em Gaza, incluindo hospitais e escolas” (tradução nossa):

matéria do MEMO de título 'No place safe in Gaza, including hospitals, schools: UN humanitarian affairs office' e as tags 'International Organisations', 'Israel', 'Middle East', 'News', 'Palestine' e 'UN'
https://www.middleeastmonitor.com/20231111-no-place-safe-in-gaza-including-hospitals-schools-un-humanitarian-affairs-office; publicado em 11/11/2023; consulta em 13/11/2023.

Mesmo após 120 votos a favor de uma resolução apresentada à Organização das Nações Unidas pedindo um cessar-fogo e a entrada de ajuda humanitária no território, Israel segue agindo violentamente sob o argumento da autodefesa¹¹, pondo em xeque o poder de uma maioria internacional de definir limites ao justificável e aceitável e de proteger os direitos humanos.

Se não é guerra, então é o quê?

Em referência às mortes de palestinos durante protestos em Gaza no ano de 2018, o cientista político Norman Finkelstein fala em massacres, com respaldo no relatório do Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre os eventos: “[O relatório] afirma claramente que Israel tem crianças como alvos intencionais nessas demonstrações, repórteres, equipes médicas (...), até mesmo pessoas com deficiência. E isso, para mim, foi um mérito para [o CDH] pelo fato de não alegar um equilíbrio falso. Para os danos causados ao povo de Gaza, são dedicadas 10 páginas inteiras, e depois há uma seção chamada ‘Impacto em Israel’, de três parágrafos. Isso é exatamente o que a realidade mostra: que, esmagadoramente — na verdade, praticamente na totalidade —, toda a morte e destruição é no lado palestino”¹².

Seja sob o pretexto de repressão, seja de retaliação, os atos de Israel se alinham com a definição dicionarizada de massacre de modo exemplar, desde o Dicio¹³ — “assassínio de pessoas sem defesa; grande morticínio cruel” — até o Oxford English Dictionary¹⁴ — “a matança brutal e indiscriminada de pessoas ou, menos comumente, animais; carnificina, abate, matança em grande número”. Em artigo para a Opera mundi de 2012, mais de dez anos atrás, a repórter e socióloga Marina Mattar mencionava massacre como uma alternativa mais condizente aos eventos em Gaza:

matéria no O.M. com o título 'O que está acontecendo na Faixa de Gaza? Guerra ou massacre?' e a lead 'Diferenças entre as capacidades militares de israelenses e palestinos marcam conflito no Oriente Médio'
https://operamundi.uol.com.br/opiniao/25512/o-que-esta-acontecendo-na-faixa-de-gaza-guerra-ou-massacre; publicado em 19/11/2012; consulta em 15/11/2023.

Qual o papel da mídia e dos demais meios de comunicação na compreensão dos eventos como uma coisa ou outra?

No programa de áudio da BBC reproduzido abaixo, cuja chamada diz “Gaza: Explosão no campo de refugiados de Jabalia” (tradução nossa), a escolha por “explosão” ao relatar o bombardeio de um campo de refugiados palestinos pelo exército israelense abre uma incerteza quanto à intencionalidade e gravidade do ocorrido, além de omitir o agente responsável por ele. Já no Jornal Nacional, a manchete “Funcionários da ONU e da Cruz Vermelha morrem em Gaza em meio ao fogo cruzado” sugere um conflito entre Israel e Hamas, quando na verdade o primeiro havia bombardeado civis.

capa do programa da BBC com foto do campo de Jabalia em escombros e o título 'Gaza: Explosion at Jabalia refugee camp', seguido da lead 'The Hamas-run heath ministry say at least 50 people have been killed'
https://www.bbc.co.uk/programmes/w172z0w3ww06vb4; publicado em 31/10/2023; consulta em 22/11/2023.

captura de tela da matéria do JN com o título 'Funcionários da ONU e da Cruz Vermelha morrem em meio ao fogo cruzado em Gaza' e a lead 'Os americanos posicionaram navios no Mediterrâneo. A primeira remessa de armamentos já chegou a Israel. Os EUA prometem mais e vão aprovar no Congresso verba emergencial para a guerra', e as informações 'Por Jornal Nacional 11/10/2023 21h02 Atualizado há um mês'
https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2023/10/11/funcionarios-da-onu-e-da-cruz-vermelha-morrem-em-meio-ao-fogo-cruzado-em-gaza.ghtml; publicado em 11/10/2023; consulta em 22/11/2023.

A repercussão desses eventos nas redes sociais vem proporcionando uma experiência nova na história: inúmeros civis e repórteres em Gaza estão sendo acompanhados por milhões de pessoas em plataformas como o Instagram e o Twitter, gerando uma proximidade que dá dimensão real às consequências das ações militares israelenses. Bisan Owda, uma das principais jornalistas reportando de Gaza, inicia suas atualizações diárias com “Oi, é a Bisan, ainda estou viva”. Em artigo para a New York Magazine, a autora palestino-estadunidense Zaina Arafat diz que “Todo dia cedo, eu olho meu feed na esperança de encontrar algo de Bisan. Fico de estômago apertado até ela aparecer”¹⁵. Essa sensibilização tem alimentado a demanda dos usuários pela transparência dos detalhes e a adequação da linguagem na cobertura dos eventos pela grande mídia, muitas vezes contrastante com a realidade que essas pessoas estão mostrando.

O que mais pode estar sendo intencionalmente reprimido nas palavras?

Tomando os ataques inclementes de Israel ao território palestino por si só, já percebemos que estes são massacres, sem correspondência com os enfrentamentos esperados de dois lados de uma guerra. No entanto, se considerarmos o contexto amplo em que estão inseridos, percebemos que essa palavra não é suficiente para definir a situação: entre a Nakba e o sítio à Faixa de Gaza, há um Estado construído sobre racismo e supremacismo, onde um ministro não pestaneja ao dizer que lutam contra “animais humanos”¹⁶ e um presidente responsabiliza “uma nação inteira” pelas ações de um grupo¹⁷.

Sylvia Miguel, numa reportagem para o Jornal da USP de 2010¹⁸, lembra que “[o] fenômeno em que um governo ou um grupo no poder ataca uma minoria étnica identificável, com a finalidade exclusiva de exterminá-la parcial ou integralmente, de forma planejada e sistemática, como maneira de resolver os conflitos de dominação política” é ao que a história chama de genocídio. Esta é a palavra que Craig Mokhiber utiliza em sua carta de renúncia ao cargo de diretor do escritório da ONU em Nova York¹⁹: “Em Gaza, casas de civis, escolas, igrejas, mesquitas e instituições de saúde são atacadas desenfreadamente enquanto milhares de civis são massacrados. Na Cisjordânia e Jerusalém ocupadas, casas são tomadas e reatribuídas inteiramente com base na raça, e violentos pogroms de colonos são acompanhados de unidades militares israelenses. Por todo o território reina o Apartheid. Este é um exemplo perfeito de genocídio. O projeto de ocupação colonial etno-nacionalista europeu na Palestina entrou em sua fase final, em direção à acelerada destruição dos últimos remanescentes da vida indígena na Palestina”.

Isso revela, portanto, que massacres podem ser apenas um dos componentes de um empreendimento maior e ainda mais perverso, com ocorrências espalhadas por toda a história do Ocidente. Resta saber: vamos mesmo deixar com que isso aconteça mais uma vez?


¹ Critical Muslim. Tradução nossa. https://www.criticalmuslim.io/three-poems-9; sem data; consulta em 21/11/2023.
² Michaelis Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/guerra; sem data; consulta em 11/11/2023.
³ Cambridge English Dictionary. Tradução nossa. “Armed fighting between two or more countries or groups, or a particular example of this”. https://dictionary.cambridge.org/dictionary/english/war; sem data; consulta em 08/11/2023.
⁴ Al Jazeera. https://www.aljazeera.com/news/2023/10/9/whats-the-israel-palestine-conflict-about-a-simple-guide; publi- cado em 09/10/2023; consulta em 20/11/2023.
⁵ TRT World. https://www.trtworld.com/magazine/this-is-the-imbalance-of-power-between-israel-and-palestine-in-real-terms-46651; publicado em 11/05/2021; consulta em 20/11/2023.
⁶ PELTIER, Leonard. Harvey Arden (ed.). Prison Writings: My Life Is My Sun Dance. 1ª ed. Nova York: St. Martin’s Press, 1999. Tradução nossa.
⁷ REIS, Palhares Moreira. Sobre a Guerra. In: Revista de Informação legislativa, Brasília, v. 36, n. 144, out./dez. 1999, p. 101-110. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/534>. Acesso em: 20/11/2023.
⁸ Folha de S. Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/10/entenda-como-foi-o-ataque-terrorista-do-hamas-em-israel-no-7-de-outubro.shtml; publicado em 14/10/2023; consulta em 20/11/2023.
⁹ ReliefWeb. https://reliefweb.int/report/occupied-palestinian-territory/death-toll-gaza-exceeds-10000-month-palestinian-organizations-call-immediate-end-israels-genocidal-warfare-against-palestinians; publicado em 07/11/2023; consulta em 20/11/2023.
¹⁰ AP News. https://apnews.com/article/palestinians-israel-health-ministry-gaza-hamas; publicado em 21/11/2023; consulta em 21/11/2023.
¹¹ UOL. https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2023/10/27/assembleia-da-onu-aprova-tregua-em-gaza-israel-diz-que-nao-cumprira.htm; publicado em 27/10/2023; consulta em 20/11/2023.
¹² Democracy Now!. Tradução nossa. https://www.democracynow.org/2019/3/4/it_is_time_to_indict_israel; publicado em 04/03/2019; consulta em 15/11/2023.
¹³ Dicio – Dicionário Online de Português. https://www.dicio.com.br/massacre; sem data; consulta em 07/11/2023.
¹⁴ Oxford English Dictionary. https://www.oed.com/search/dictionary/?scope=Entries&q=massacre; sem data; consulta em 20/11/2023.
¹⁵ New York Magazine. Tradução nossa.https://nymag.com/intelligencer/article/bisan-plestia-motaz-gaza-through-my-instagram-feed.html; publicado em 20/11/2023; consulta em 21/11/2023.
¹⁶ Brasil de Fato. https://www.brasildefato.com.br/2023/10/29/genocidio-terrorismo-massacre-escancara-limites-das-leis-internacionais-com-confronto-colonial-na-palestina; publicado em 29/10/2023; consulta em 22/11/2023.
¹⁷ HuffPost. https://www.huffpost.com/entry/israel-gaza-isaac-herzog; publicado em 13/10/2023; consulta em 26/11/2023.
¹⁸ Jornal da USP. https://web.archive.org/web/20210410204324/http://espaber.uspnet.usp.br/jorusp/?p=9192; publicado em 03/05/2013; consulta em 22/11/2023.
¹⁹ Democracy Now!. https://www.democracynow.org/2023/11/1/craig_mokhiber_un_resignation_israel_gaza; publicado em 01/11/2023; consulta em 10/11/2023.